Sobre
o chamado “princípio da insignificância”
Aristides Medeiros
ADVOGADO
Não há no Código de Processo
Penal nenhum dispositivo que autorize o juiz a absolver alguém, fazendo-o pela
simples e tão só circunstância de que o crime por si praticado terá ocasionado
insignificante lesão a bem jurídico, sem qualquer relevância social.
Com efeito, as únicas
hipóteses que legalmente ensejam absolvição são apenas as exaustivamente
consignadas no caput do art. 386 da lei penal adjetiva (numerus clausus), onde não
estão contemplados os casos que se convencionou chamar de “crimes de bagatela”.
Subtrair coisa alheia
móvel, qualquer que seja o seu valor (pois aí a lei nada ressalvou), é
induvidosamente fato tipificado no Código Penal, porquanto configura
crime de furto, previsto no seu art. 155, caput, estando ali
reunidos todos os elementos da sua tipicidade, a que BELING conceituou
como a “qualidade do fato, em virtude do qual este se pode enquadrar dentro de
alguma das figuras de crime descritas pelo legislador” (apud
NELSON HUNGRIA, in “Comentários ao Código Penal”, Forense, 3ª
ed., 1955, Vol. I, Tomo II, pág. 18, nota 17). Por conseguinte, se a conduta se
subsumir perfeitamente ao descrito no dispositivo incriminador, ter-se-á um
fato típico. A contrario sensu, se a ação (ou omissão) não
corresponder ao ali previsto, aí (apenas
e tão somente nessa hipótese) é que inexistirá tipicidade. E provadas a materialidade e a autoria
(inexistindo excludentes), o agente deverá ser obrigatoriamente condenado, não
podendo ocorrer absolvição.
Na hipótese. do furto, por
exemplo, não consta da sua tipicidade qualquer referência a valor da res,
ou seja, não se há considerar se a mesma (ou sua conseqüência) é
insignificante, a menos que o legislador, se for o caso, como conditio
sine qua non venha, no futuro, a alterar a lei para nela expressamente
contemplar o chamado “princípio da insignificância”.
Conforme acentuou DAMÁSIO
EVANGELISTA DE JESUS, a tipicidade “é a correspondência entre o fato praticado
pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na lei penal
incriminadora” (in Direito
Penal, Saraiva, 20ª ed., 1997, Vol. I, pág. 262).
E MAGALHÃES NORONHA corrobora: “Para ser crime,
é mister ser típica a ação, isto é, deve a atuação do sujeito ativo do delito
ter tipicidade. Atuar tipicamente é agir de acordo com o tipo. Este é
a descrição da conduta humana feita pela lei e correspondente ao crime” (in
Direito Penal, Saraiva, 25ª ed., 1987, Vol. I, nº 52, pág. 96).
Portanto, quem “Subtrair, para si ou para outrem, coisa
alheia móvel”, estará praticando o crime de furto, com-todas-as-letras
tipificado no art. 155, caput, do Código Penal, isso sem qualquer
exceção quanto ao valor da coisa
subtraída, pois este não integra o tipo, cometendo o agente, então, um
fato típico, e não um atípico, como, ao revés, afirmam alguns.
É evidente que, pelo
pequeno valor da coisa furtada, o agente haverá de obter algum benefício, que
será levado em conta na aplicação
da pena-base, considerando-se, para isso, os “motivos, circunstâncias e
conseqüências” (art. 59, parte inicial, do CP), vantagem que, em se tratando de
furto, admitirá até a substituição da pena privativa de liberdade pela de multa
(§ 2º do art. 155, c/c inc. IV do art. 59, do CP).
Em casos que tais, não
poderá o julgador, legalmente, proferir decisão absolutória, face à
inocorrência de qualquer das hipóteses elencadas no art. 386, caput,
do CPP), sendo certo que, tanto para condenar, como para absolver, na sentença
o juiz deverá obrigatoriamente indicar, entre outros, os “motivos de fato e de
direito em que se fundar a decisão” (art. 381, inc. III), destarte não podendo
exculpar quem subtrai, para si ou para outrem, coisa alheia móvel (ainda que
seja uma lata de sardinha), pois o fato é típico, eis que “nele se reúnem todos
os elementos de sua definição legal” (art. 14, caput, inc. I, do
Código Penal), nesta não havendo nenhuma ressalva quanto ao valor da res
furtiva.
Induvidoso é que, se na
tipificação legal não há menção a extremo mínimo a ser considerado (como, verbi
gratia, no caso de furto), não pode o intérprete sponte propria estabelecer
algum, porquanto, na lição de NELSON HUNGRIA, “A lei penal é, assim, um sistema
fechado: ainda que se apresente omissa ou lacunosa, não pode ser suprida
pelo arbítrio judicial, ou pelos “princípios gerais do direito”, ou pelo
costume” (idem, nº 1, pág. 11)
Absolver alguém que furta
um vidro de esmalte, ou uma lata de leite ou uma de sardinha, convenhamos, será
criar perigoso precedente, incentivando a que fatos como esses proliferem.
E então haverá o cáos, porque muitos vão se julgar com o “direito” de, mesmo
sem o ser em estado de necessidade, subtrair um pacote de feijão, ou um de
arroz, ou um de macarrão, o que importaria em absurdamente lhe ser conferido um
verdadeiro bill de indenidade.
É bem verdade que muitos
ficam condoídos com a situação de pessoa humilde acusada de furtar coisa de pequeno
valor. Isso, de certo modo, é
humanamente compreensível. Todavia, um sentimento que tal não pode conduzir ao
impedimento da aplicação de normas legais,por estas não excluído expressamente
o caráter criminoso da correspondente ação.
Entre os que defendem o
chamado “princípio da insignificância”, há uns que o fazem à assertiva de que o
aparelhamento judiciário não deve ser acionado para apreciar os tais “crimes de
bagatela”, porque, segundo eles, a Justiça ficaria “entupida” com milhares e
milhares de processos.
Data
venia, referida tese caracteriza, como que, um verdadeiro argumento
ad terrorem, como assim certa vez considerou o Pretório Excelso
(mais precisamente antes do advento da regra consignada no § 3° do art. 109 da
vigente Carta Magna), ao rechaçar o então entendimento de que seria de Juiz
estadual a competência para julgar ilícitos relativos a entorpecentes com
caráter de internacionalidade ocorridos em município do interior, e isso
somente porque juízes federais são poucos, e juízes estaduais são muitos (!) , ou seja, não por motivo de direito, mas
sim por mera conveniência.
É
evidente que, no particular, a pletora de processos cairia por demais se
condenações fossem efetivamente proferidas (ainda que com aplicação de penas
levíssimas), pois então a todos ficaria o exemplo, pela certeza da
não-impunidade. Na não-condenação, aí, sim, é que estará havendo incentivo à
proliferação das ações praticadas não em estado de necessidade.
No caso
de furto, como se viu, o próprio Código explicita que, por si só, o pequeno
valor (“crime de bagatela”, sic) não enseja absolvição, eis que,
quando muito, admite a imposição somente
da pena de multa e possibilita a aplicação de penas alternativas, valendo referir que, quanto a infrações
penais de menor potencial ofensivo, a lei apenas prevê que devam ser
processadas e julgadas perante o Juizado Especial Criminal, de que trata a Lei
n° 9.099, de 26/9/95.
Veja-se
que no item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal, da lavra do Ministro
FRANCISCO CAMPOS, restou assim consignado: “Não se distingue, para diverso
tratamento penal, entre o maior ou menor valor da lesão patrimonial; mas,
tratando-se de furto, apropriação
indébita ou estelionato,
quando a coisa subtraída, desviada ou captada é de pequeno valor, e desde que o
agente é criminoso primário, pode o juiz substituir a pena de reclusão pela de
detenção, diminuí-la de um até dois terços, ou aplicar somente a de multa” (v.
NELSON HUNGRIA, idem, 3ª ed., 1955, Vol. I, Tomo I, pág. 257).
Assim é
que na lei penal substantiva veio a ser expressamente assentado que, “Se o
criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços,
ou aplicar somente a pena de multa” (§ 2º do art, 155, aplicável também no caso
do art. 170).
A esse
respeito, por sinal, destacou o conspícuo NELSON HUNGRIA: “Como já foi
observado, o diminuto valor da coisa subtraída não exclui o furto; mas a lei
não deixa de tê-lo em conta, para um temperamento da sanção penal: identifica
no caso um furtum privilegiatum, isto é, autoriza o juiz a
reconhecer no pequeno valor, e desde que primário o agente, uma
atenuante especial ou minorante da penalidade cominada quer ao furto
simples, quer ao furto noturno ( abstraído o furto qualificado)” (idem,
2ª ed., 1958, Vol. VII, nº 9, pág. 32).
Sentença absolutória, que
alguns pugnam para que ocorra indistintamente em todos os casos de insignificante valor – e só por
causa disso, - haverá de frontalmente
violentar a imperativa disposição insculpida no art. 386, caput,
do CPP, até porque não poderia o juiz, ao absolver, na sentença expor os
motivos de direito “em que se fundar a decisão” (art. 381, inc.
III, do CPP).
Indubitável é que, em
certas hipóteses (por exceção), não deverá haver punição do agente que tenha
praticado, por exemplo, furto de pequeno valor (ou até mesmo de significativo
valor) se se configurar a excludente do chamado estado de necessidade,
expressamente prevista no art. 23, caput, inc. I, do Código
Penal, por isso que o art. 386, caput, inc. V, do Código de
Processo Penal, prevê que, aí, “O juiz absolverá o réu”. Contudo, para que
assim aconteça, não basta a mera alegação, mas haverá de ficar quantum
satis provado nos autos haver o réu praticado o fato “para salvar de
perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar,
direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se “ (art. 24, caput, do CP).
O chamado “princípio da
insignificância” se funda em argumentação de lege ferenda, sendo
que, para que o mesmo passe a ter plena eficácia, será necessário que lei nova
venha a dispor sobre o assunto, como, por exemplo, ocorreu no caso de
arrematação de bens, cujo inc. VI do art. 686, caput, do Código de
Processo Civil, estatuiu originariamente que, em segunda praça ou leilão, a
venda dos bens poderia ser feita “a quem mais der”, isto é, por qualquer preço,
tendo lei nova (Lei nº 6.851, de 17/11/80), de algum modo vindo a ressalvar, no
art. 692, que a expressão “a quem mais der”, não incluía “preço vil”. E aí,
então a exceção veio a ser operada de lege lata.
Aliás, sintomático é que,
quando recomendam que aos chamados “crimes de bagatela” não deverá haver
punição, afirmam os defensores dessa tese que, na hipótese, “o direito
penal não deve intervir, porque este deve reservar-se aos casos em que haja,
verdadeiramente, uma lesão considerável a um bem jurídico tutelado”. Como se
vê, não dizem que o direito penal intervém (tempo atual), mas sim que – repita-se, - não
deve intervir (tempo futuro), ou seja, de lege ferenda
e não de lege lata, assim entendido que ação ocasionadora de
insignificante lesão a bem jurídico só poderá deixar de ser punível se a lei
vier a isso prever expressamente.
Tanto é verdadeiro que o
juiz não pode legalmente absolver alguém pelo só fato de haver ele praticado
crime considerado como de menor importância, - e isso à falta de dispositivo
legal que o admita, - tanto tal é verdadeiro, dizia, que, com a intenção de
tornar efetiva a aplicação do chamado princípio da insignificância, nesse
sentido o Deputado CARLOS SOUZA (PP/AM) apresentou à Câmara Federal, - além da PEC 524/2006 (in www.camara.gov.br/internet5/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=318038) - o Projeto de Lei que veio a tomar o número PL-6667/2006, cujo art. 2°
dá ao atual art. 22 do Código Penal a seguinte nova redação: “Art. 22 – Salvo
os casos de reincidência, ameaça ou coação, não há crime quando o agente
pratica fato cuja lesividade é insignificante” (sic). À parte os
defeitos de jure contidos na disposição proposta, - entre os
quais a impossibilidade de se apurar a reincidência, bem como a falta de
definição sobre o que se considera “insignificante”, - a ocorrência mais uma
vez revela que o tal “princípio da insignificância” só poderá ter legal efetiva
aplicação se vier a ser fundado em lei, o que presentemente não ocorre.
Como visto, ex vi
legis o juiz só poderá legalmente absolver o réu se ocorrer alguma das
hipóteses circunscritas no art. 386, caput, do Código de Processo
Penal, do que, sob pena de violentar a lei, haverá de obrigatoriamente oferecer
a devida justificação na parte dispositiva da sentença. Nem lhe será lícito
considerar “não constituir o fato infração penal” (inc. III) o furto de coisa
chamada de pequeno valor, porque o Código Penal estatui,
incondicionalmente, que configura crime a ação tipificada no seu art. 155, caput,
restando ao magistrado, se for o caso, tão somente conceder o favor legal de
que trata o seu § 2º.